sábado, 4 de fevereiro de 2012

O cálice de sangue...



O cálice de sangue que ontem bebi,
Da gélida mão do destino audaz;
E a vida soturna que outrora vivi
Relembram a aurora que o tempo não trás

O calor da batalha que há muito repousa
E a espada sangrenta que sob a luz reluzia
Revelam à alma outra estranha cousa
Do vale sombrio que sobre a Terra jazia

Naquelas bandas; naquele tempo
Sob a copa dos olmos; ouvindo os pardais;
Sentindo na tez o suave vento
Clamava em vão por quem não existe mais

A donzela de sangue de adágios languidos
Que amor ao andante concedeu
Criou sobre a Terra sentimentos sofridos
E sobre a mesma Terra a dama por amor padeceu

O cavaleiro maldito que a donzela amou;
Que sofrer e choro ela por ele verteu,
Pelo vale dos ossos sem fé transitou
O cavaleiro da história, meu Deus, sou eu!

A donzela de sangue



Certa vez, nascida da dor,
Levada da corte de sua nação,
Almejando odiar o que se diz amor,
Carregava consigo a estrela da perdição

A donzela de sangue que a serpente criou
Sob a lua vingativa que sobre ela brilhava,
Por um ser inanimado se enamorou,
E o mesmo ser a amaldiçoava

Dia após dia comendo a fruta do pecado
A dama sanguinária que ao sofrimento servia
Regressou ao reino com o cruel recado
De que a serpente maldosa com ela vivia

E o seu povo não aceitou tamanha desonra
Que a dama em seu ventre trazia consigo,
Tirando dela toda a honra,
Lançando sobre a mesma o eterno castigo

A donzela de sangue percorreu os caminhos
Dos gélidos montes tenebrosos,
Pisando com pesar os venenosos espinhos
Da terra maldita dos espíritos odiosos

A donzela maléfica de tantos martírios
Que amor ao ser sombrio tanto devotou
Viveu de devaneios, sofreu com delírios
E a serpente do Éden foi quem a matou!

O corvo, de Edgar Allan Poe, traduzido por Machado de Assis



O corvo

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguém chamará mais.