quarta-feira, 27 de março de 2013

Charlotte


     … Há muitos anos atrás, mais anos do que uma dezena de gerações é capaz de presenciar, aqui nestas terras existiu uma pequena aldeia: o único refúgio dos seres humanos que viviam nessas redondezas.
Assim como em todas as histórias que você deve ter ouvido sobre os tempos antigos, as pessoas ali viviam de forma simples, aproveitando sempre que possível os benefícios dados pela natureza, trabalhando dia após dia para sobreviver e tentando sempre seguir as vontades dos deuses, embora elas não fossem capazes de entender por completo o que estes deuses queriam; pensando bem, a vida deles naquela época não é muito diferente da nossa hoje em dia, não é mesmo?
     É claro que em uma aldeia comum com pessoas comuns sempre tem de haver algo de extraordinário. E no caso da aldeia em questão este elemento era Charlotte.

     Na verdade, havia boatos de que esse não era realmente o seu nome; outros diziam que ela era uma estrangeira de uma terra distante que ninguém sabia dizer qual. Para ouvir alguma dessas teorias, ou até mesmo outras bem mais sombrias, bastava entrar em uma taberna depois que o sol já tivesse se posto.
     “Ela é amaldiçoada.” é o que a maioria das pessoas dizia. Os homens só ousavam falar sobre ela entre si e somente quando tinham certeza de que todos que ouviam eram de confiança; ou até estarem bêbados o suficiente para esquecer que até mesmo as paredes têm ouvidos. As mulheres mantinham sempre distância dela e sempre a olhavam com repulsa, umas por acreditavam na “maldição”, outras por inveja, e algumas por ambos os motivos.
     A verdade é que Charlotte era o motivo da paixão da maioria, se não todos, os jovens rapazes (e até mesmo de alguns homens mais vividos e com família constituída), por toda a aldeia desde sempre; ou pelo menos desde que os moradores conseguiam se lembrar.
     Charlotte era realmente muito bela (algumas pessoas diziam que ela nunca envelhecia e que vivera na aldeia por dezenas de anos, porém eu duvido que isso realmente tenha acontecido), todavia possuía uma personalidade taciturna e hábitos reclusos. Residia sozinha em um casebre, não muito diferente das demais moradias da localidade, que se situava no extremo da aldeia mais próximo das montanhas. Nunca lhe era exigido esforço para conquistar o coração de um aldeão, um simples olhar durante uma caminhada diurna era o suficiente para que no dia seguinte, e durante as semanas que se sucediam, o pobre rapaz esquecesse-se completamente da vida e passasse a cortejá-la como um cão que segue sua dona onde quer que vá, e depois sentasse a porta esperando que esta apareça.
     No início Charlotte era vista como uma bruxa ou um espírito maligno que viera a este local remoto para seduzir os homens e desencaminhá-los do caminho dos deuses. A Maldição surgiu quando alguns jovens rejeitados por Charlotte começaram a suicidar-se. Não foram muitos é verdade, um quarto de dúzia talvez, mas foi o suficiente para dar início aos boatos. Na realidade não havia provas que a morte deles estava diretamente ligada ao fato deles estarem “enfeitiçados” por ela, exceto o último, que se enforcou segurando uma carta romântica destinada a “srta. Charlotte” com um conteúdo bem sentimental e piegas.
     A real natureza e sentimentos de Charlotte nunca foram entendidos ou descobertos. O fato é parecia que ela gostava de conquistar os jovens, só para depois parti-lhes o coração. Era com se o seu alimento fosse o desespero causado àquelas pessoas, como se dependesse disso para sobreviver; ela não tentava negar a alcunha de bruxa que lhe era dada.
     Porém está faltando nesta história a reviravolta que leva a um fim inesperado, pois como eu disse, esta é apenas mais uma das histórias de tempos remotos. E neste caso este fator veio com o nome de Edgar.
     Edgar era somente mais um jovem rapaz naquele povoado. Filho de um pobre carpinteiro, logo também era carpinteiro e também era pobre. Sempre fora visto como um jovem estranho, não falava muito, nunca foi visto com alguma garota local (o deixava seu pai preocupado) e sempre que lhe perguntavam o porquê ele respondia que estava esperando encontrar alguém especial, alguém que ele pudesse amar e que lhe retribuísse esse amor. Assim como você já deve ter entendido, Edgar certo dia percebeu Charlotte quando esta estava cruzando a rua principal rumo a sua residência.
     O rapaz era exatamente o tipo de pessoa que nunca deveria cair no encanto de Charlotte, pois era o tipo mais propício a sofrer. Todavia o destino não é piedoso e na metade do outono Edgar já estava sentido os sintomas de uma paixão doentia.
     Uma característica daquele jovem era a persistência, com certeza. Ninguém antes passara dois meses perseguindo Charlotte. Alguns moradores brincavam que o rapaz acabaria com todo o estoque de papel do povoado. Os pais dele tentaram fazer com que o rapaz terminasse com aquela humilhação, mas sempre que tocavam no assunto recebiam um “já tenho idade o suficiente para saber o que fazer com a minha vida” como resposta.
     No início Charlotte lia as cartas que recebia dos aldeãos, como que esperando encontrar algo entre as palavras. Porém, depois de algum tempo as correspondências passaram a servir somente para alimentar a fogueira, sem nem ao menos serem abertas, e isso aconteceu com as cartas de Edgar. A verdade é que Charlotte estava farta de ser objeto de obsessão da maioria dos homens da aldeia; estava cansada de todos verem nela tudo exceto o que ela queria que alguém notasse.
     Então certo dia ela encontrou entre estas cartas uma com a palavra “ADEUS” grafada no envelope rústico feito a mão. A curiosidade a vez abri-la e ler. Os olhos dela começaram varrer as linhas, quando de repente um sorriso surgiu em seu rosto e um fio de lágrima saiu de seu olho. “Então alguém finalmente percebeu.”.
     Mas o motivo da despedida denotada no envelope só se encontrava no final da mensagem. Edgar seria mais uma vítima da “maldição”, a quarta pessoa a cometer suicídio por um motivo tão estúpido quanto um amor não correspondido (se é que aquele jovem realmente já havia amado alguém). “Obrigado por me fazer perceber que a vida não tem sentido” dizia a última frase da carta.
     Durante a tarde daquele dia a notícia já chegara ao ouvido de todos os habitantes da localidade. O jovem Edgar havia pulado de um precipício localizado na trilha que levava ao topo das montanhas. Seu corpo ainda estava lá, aos pés da montanha, esperando que alguém da família fosse buscá-lo e o enterrasse com o máximo de dignidade possível.
     Charlotte andava pelo centro da aldeia quando descobriu que fim tivera Edgar. Todos lhe dirigiam um olhar acusador, penso que até mesmo ela faria isso, caso encontrasse um espelho para poder olhar para si mesma. Ela foi tomada pela culpa de uma forma que nunca acontecera antes. Era do conhecimento de todos que aqueles que desistiam da própria vida eram condenados pelos deuses a uma existência de sofrimento eterno; aquela pobre alma nunca mais conheceria o descanso e o motivo disso era uma mulher.
     Dias passaram e Charlotte sempre se questionava se não seria possível fazer qualquer coisa por Edgar, mas essa era uma pergunta que somente os deuses poderiam responder. Foi então que ela teve esta ideia: precisava conversar diretamente com os deuses, e embora provavelmente estes não a ouviriam, ou caso ouvissem não responderiam, ela sentia-se obrigada a tentar.
     Seria necessário estar o mais próximo deles para que estes a ouvissem, pensou ela. E que local mais próximo dos deuses existia naquela região senão o topo das montanhas?
     Charlotte esperou até anoitecer e todas as pessoas saírem das ruas, já estava cansada de pessoas se intrometendo em sua vida. A trilha não era difícil e também aquela não era a primeira vez que Charlotte subira aquele caminho. No topo da montanha mais alta havia um terreno praticamente plano com a dimensão de umas cinco casas.
     O vento soprava frio, a Lua surgia num canto do céu, mas tão pequena que mais parecia um filete de luz em forma de “C”. Lá de cima olhar para o povoado revelava a sua pequenez, imaginar as pessoas lá embaixo demostrava o nosso tamanho perante o universo.
     Charlotte fitou o firmamento e implorou pela atenção de pelo menos um dos deuses. Ela pedia pela liberdade da alma de Edgar, um ser inocente que fora levando por culpa sua. Lágrimas vertiam de seus olhos e alcançavam a terra.
     Esta cena durou alguns minutos, até que aparentemente um deus piedoso lhe respondeu “Sabes que o que pedes é impossível.”. “Ouvi dizer que não existe impossível para um deus poderoso.” ela respondeu. O deus que falara gostou da resposta daquela humana e logo outros deuses interessaram-se pela conversa.
     “E como sabes que sou um deus poderoso?” perguntou o que falara antes. “Pois se não és poderoso o suficiente, deixe-me falar com um que seja.” respondeu a mulher.
     “Pois bem, mortal, posso fazer o que pedes.” disse uma segunda voz, esta certamente demostrava mais poder, porém, notava-se um tom de sadismo nela. “Todavia, um sacrifício de ser feito para que uma alma condenada seja salva.”. “Está bem.” foi a resposta de Charlotte.
     Provavelmente os deuses se surpreenderam com a força daquela mortal que aceitava desistir da própria vida para ajudar alguém que ela nem ao menos conhecia, ou isso, ou ela era completamente louca. O deus sádico parecia satisfeito e com pressa de cumprir com a sua parte do trato antes de Charlotte desistir, embora, se ele pudesse ver a mente dela, saberia que ela nem sequer pensara na ideia de não prosseguir.
     Um ponto de luz surgiu ao pé da montanha e em seguida subiu em direção ao céu até atingiu seu local determinado e pois-se a brilhar intensamente; ele parecia estar feliz. Charlotte ergueu seu braço direito, apontando com o seu indicador à mais nova estrela do firmamento.
“Agora é momento de cumprires com sua parte.” disse o deus sádico e o neste momento o corpo de Charlotte começou a se transformar em pedra.
     Após, outros deuses, estes mais piedosos e caridosos, entristeceram ao perceber o que acontecera a uma de suas filhas, e como se estivessem de luto, um terrível inverno atingiu aquele local.
     Os moradores da aldeia tentaram durante certo tempo permanecerem ali, porém cada dia que se passava os alimentos tornavam-se mais escassos e por fim todos foram obrigados a buscarem um novo lar longe dessas terras.
     Anos se passaram e, por fim, os deuses pararam de castigar a terra. A neve que se formara começou da derreter e a aldeia, agora destruída, começou a surgir novamente. Porém, nós nunca mais voltamos a povoar aquele lugar.
     Embora a neve tenha desaparecido, por algum motivo o topo da montanha onde Charlotte estava continua tomado por uma camada branca e gelada.
     É este o motivo pelo qual somente uma daquelas montanhas que vemos no horizonte é coberta de neve. E dizem que se você subir até o cume da mais alta, lá estará uma estátua de pedra uma mulher que a noite aponta sempre para a mesma estrela.

Um comentário:

  1. Peço desculpa se a segunda metade do texto possuir muitos erros e parecer meio "cru". Ele estava aqui guardado durante um tempo e eu não consegui revisá-lo; simplesmente não me senti a vontade o suficiente para fazê-lo, e como provavelmente ele nunca seria postado se dependesse dessa revisão, coloquei-o aqui mesmo assim.

    ResponderExcluir