domingo, 11 de dezembro de 2011

Prelúdio



Volto ao local que, quando criança, proporcionou-me grande alegria. Nele tive amigos inesquecíveis que guardo apenas no coração, pois já não tenho contato com os mesmos.
                A antiga escola, hoje não mais ativa, me traz lembranças que jamais esquecerei. A bela Janine, namoradinha de infância; o esquisito Eduardo, colecionador de sapos e formigas; Felipe, o hiperativo da classe.
Na sala de estar, encontro a velha poltrona de Sra. Dorothy, frente à lareira coberta de cinzas. Subo as escadas e me deparo com o corredor, sigo então para meu antigo dormitório, onde lá encontro minha velha bola de futebol, esta já murcha, em decorrência dos anos que passaram. Encontro também meu pequeno saco de bolas de gude e muita poeira.


Sigo para outro quarto, cujo de quem era não sei, porém, percebo logo sobre a escrivaninha que dentro deste ainda existe a linda boneca de pano da pequena Emilie, suja, pois fora esquecida ali, do mesmo jeito em que a menina a deixara; desta boneca tenho a lembrança de que quando era eu apenas um garoto, pegava-a e, com a ajuda do enérgico Felipe, escondia-a no sótão do abrigo, o que fazia com que a pequena não fosse até lá para apanhá-la, pois tinha medo do que lhe podia acontecer. Logo eu a animava, dizendo que nada aconteceria para ela enquanto eu estivesse vivo, o que a deixava feliz e segura quando estava perto de mim. Mais ao longe, pela janela quebrada do aposento, vejo um pátio de folhas secas, derrubadas das árvores pelo outono da vida; atrás da escola, ainda hoje, há o velho cemitério que outrora fora utilizado por soldados durante a Primeira Grande Guerra, este já fora, durante minha infância, cenário de brincadeiras entre meus amigos e eu. Lá ainda permanece a humilde casa de Chef, nosso antigo cão de estimação.
Dona Tereza, diretora do orfanato, morrera há anos, porém, ainda me lembro de sua voz ecoando pelo grande corredor que liga os dormitórios à biblioteca sombria, da qual por anos tivemos medo de entrar, pois volta e meia ouvíamos grunhidos vindos desta. A poeira, quase idêntica a uma densa neblina, dá para o casarão um ar de penumbra. Por anos não fora limpo, coisa óbvia, uma vez que ninguém o quis comprar, devido o cemitério que o acompanha.      
Lembro-me da vez em que, correndo, caí da escada que dá para a cozinha; agora, desço-a vagarosamente, enquanto castigo minha mente ao tentar lembrar o doce aroma dos biscoitos e também do mingau que Sra. Hollanda nos fazia diariamente para o desjejum. Passo então pela porta que dá para os fundos do casarão; vejo uma bagunça completa, um risco no muro, este um dos frutos de minhas tardes inquietas. 
De repente uma chuva fina cai, exalando pelo ar, o maravilhoso aroma de terra molhada. Ouço então um estrondo, este vem de dentro da casa, corro mais para o fundo do quintal, com o intuito de ver o que ocorre por fora do casarão. A certa distância, ainda ouço gritos, logo fito a janela do dormitório das meninas e vejo homens encapuzados, com balanças nas mãos, alguns deles, sem rosto. Estes correm atrás das crianças, proferindo contra elas palavras de desgraça e ofensa. Vejo então que os mesmos se multiplicam por dentro de toda casa, no que me decido a entrar e ajudar meus queridos amigos. Lá chegando, não vejo e nem ouço nada, caminho pelo corredor, porém, sem ao menos entender o porquê, este parece repentinamente ter sido limpo, e também repovoado. Lá está ela: Janine, a linda garotinha de cabelos ruivos e anelados! Seu vestido simples de bolinhas e laço parece encantar até mesmo um anjo. Não sei o porquê, mas esta corre em direção à biblioteca, vou atrás dela e, chegando lá, posso ver que a menina se esconde atrás da prateleira mais longínqua, sigo até ela, mas esta não parece me ver; olha na minha direção, porém, não é a mim que está fitando; olho para trás e avisto um homem sem rosto, com uma grande foice em mãos, este geme, não fala; a menina grita, parte de seu desespero sai pela boca, em um momento de medo. O homem então levanta a foice e em um golpe apenas, acaba com a cena a qual eu lutei anos para apagar de minha memória.
Sem perceber, sou transferido para um local mais escuro, o sótão. Cheio de teias e insetos que até hoje desconheço, mas é o sótão. Ouço soluços que lutam para serem abafados, procuro, mas não acho, então digo: “Tem alguém aqui?”, ouço alguém perguntar se o dono da voz era realmente eu: “É claro!”, respondi, porém, o choro não cessa, só então posso ver a imagem da pequena menina abaixada no lado mais escuro do sótão, chorando. Pergunto a ela o que acontece, mas esta parece não mais me ouvir. Então olha para a porta do sótão que se abre vagarosamente e, dela sai alguém, um garoto, que entra silenciosamente. A menina, Emilie, corre para os braços do garoto que mais parece seu irmão, este a abraça com força e diz que tudo ficará bem, porém, algo nele me comove e, ao mesmo tempo, me irrita. Aquele garoto... sou eu! Mas como? Como, se eu estou aqui e já não sou um menino? Olho para um espelho que há perto dali e, com o pouco de brilho que entra pelas brechas da janela, consigo me ver... não! Não consigo me ver... não! Posso ver um fantasma... sim! Alguém que hoje não está vivo, mas morto. Uma forte pancada é dada na porta do sótão que, de um momento ao outro, vem ao chão; escondo-me! Entram pela porta os homens sem rostos de antes, estes procuram por algo, certamente as crianças que ali estavam e mesmo eu já não as enxergava. Espero que estes sigam até o fundo do sótão e, quando acho uma oportunidade, corro rapidamente para fora do casarão, rumo ao cemitério. Lá escondo-me atrás d’uma lápide antiga, sempre olhando para o casarão, posso até ver os homens, porém, estes não me enxergam... aleluia! Dou uma bufada de alívio e levo meus olhos em direção às escritas das memórias daquela lápide... aleluia?! Leio meu nome nela!
Ouço pelo céu ecoando
A voz de uma garotinha que,
Falando diz:
Até quando?

Olho para o céu, de onde a chuva cai
Novamente a voz ecoa
Num tom de vem e vai
Breve e suave: a garoa?

Então pergunto o que sou eu
E ouço melancolicamente
Da voz do vento:
Um pensamento!

E quem em mim pensaria?
Certamente devo sonhar,
Sonho com o alento...
E por que sonharia?

Um breve vento sopra
Uma bela música toca
Ouço gritos!

Num tom breve;
Num tom veemente,
Um coração e uma mente
Eternamente?

De repente acordo com o som da amada voz da pequenina Emilie que, ao lado dos outros veio para me acordar, a diretora ali também se encontra, ao lado da cozinheira e da Sra. Dorothy. Percebo então que tudo aquilo não passava de um sonho... um pesadelo, mas parecia muito real para que fosse logo esquecido. A menina me diz que outra menina nos fundos da casa me espera: Janine! Desço correndo na direção dela; está linda esta manhã, com o seu lindo vestido de bolinhas e laço, tem em mãos uma bela flor e, ao seu lado, Chef, o mais alegre cão que já vi, porém, quando já perto de Janine estou, ouço uma sirene, esta anuncia o início de um novo mundo; o prelúdio da decadência.  



Um comentário:

  1. Muito bom o texto... faz-nos viajar por um prisma surreal e espiritualista (para os que crêem). Dentro de uma mistura real e irreal, podemos entender que o sonho muitas vezes não tem significado nenhum, a não ser a subconsciência agindo de forma plena e convicente. (PROF. LUIS CLAUDIO)

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